de Bárbara Libório
Houve um tempo, não muito distante, em que o brasileiro era conhecido pela alegria e pelo otimismo, apesar das adversidades. O Carnaval, o futebol, as belezas naturais, ainda que formassem um clichê até certo ponto irreal do País, eram motivos suficientes para manter a autoestima nacional nas alturas. A imagem de um povo feliz e irreverente, no entanto, ficou para trás. Se em 2002 84% dos brasileiros afirmavam sentir mais orgulho do que vergonha do país, hoje os ufanistas são apenas 50% da população. Uma pesquisa recente do Instituto Datafolha revela que 47%, quase a metade dos brasileiros, têm mais vergonha do que orgulho do Brasil. A escalada da corrupção, da violência e a crise política e econômica deixam a “luz no fim do túnel” cada vez mais fora do campo de visão. Pouco mais de um ano antes das eleições presidenciais de 2018, os brasileiros se sentem órfãos de lideranças — um sintoma de que ainda estamos longe de recuperar a confiança de tempos atrás. Se há uma boa notícia nesse cenário sombrio, é que ele tem tudo para ser passageiro. Seu desfecho inevitável será uma nação mais justa e menos corrupta — e certamente mais feliz, como nos velhos tempos.
A onda de descrença nos políticos avança desde 2005, com a revelação do escândalo do Mensalão, e se acentuou em 2014, com o início da operação Lava Jato. O esquema de corrupção, lavagem e desvio de dinheiro para campanhas eleitorais envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos pode chegar ao valor estratosférico de R$ 42 bilhões, ao mesmo tempo em que a oferta de serviços públicos, como segurança, saúde e educação, que constitucionalmente cabem ao Estado, beira o caos. Fora de controle, a violência no Brasil mata mais que a guerra na Síria. No ranking global da felicidade, divulgado pelas Nações Unidas em março, o Brasil caiu cinco posições e passou para o 22º lugar. A queda foi a segunda consecutiva: no período de 2013 a 2015, o País passou de 16º para 17º. Até o Carnaval do Rio de Janeiro, símbolo máximo da alegria nacional no exterior, esteve ameaçado: a liga das escolas de samba suspendeu os desfiles de 2018 assim que o prefeito Marcelo Crivella reduzir pela metade a verba para a entidade. Depois de muita discussão, as escolas irão para a avenida, dessa vez sem a costumeira euforia.
Os cortes nos orçamentos de municípios, estados e governo federal são resultado direto da queda na arrecadação, após mais de três anos de recessão na economia. Essa é a face da crise que mais impacta na falta de perspectiva da população brasileira.
Ainda que a inflação tenha dado trégua, o desemprego recorde assusta: são mais de 14 milhões de desempregados no País, muitos sem renda há meses. Até quem já construiu bons currículos profissionais e acadêmicos se viu obrigado a mudar de área ou buscar novos caminhos. A publicitária Adriana Galante, 29, trabalhou durante três anos no setor comercial de uma grande empresa de comunicação. Há um ano e meio, foi demitida. Desde então ela paga as contas como pode: faz eventos, busca trabalho em outras áreas e passou a vender acessórios femininos. “A gente sente a ansiedade de não saber como vai ser no mês seguinte, bate um desespero”, conta. O jeito, segundo ela, é se reinventar. “Quem tem veia empreendedora vai atrás disso ainda que seja informalmente. Quem tem formação em uma área busca novos nichos.”
Até o jeito de consumir do brasileiro mudou. A demanda por crédito, por exemplo, diminuiu com o medo do desemprego e da crise. O deslumbramento do auge do crescimento econômico acabou, e a mudança parece ter vindo para ficar. “Hoje o consumidor radicalizou mais a relação custo e benefício. Eles pensam melhor se de fato precisam daquele produto”, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, de pesquisas de opinião. O processo de compra também está diferente. “Estamos assistindo ao crescimento de economia compartilhada e dos produtos de segunda mão”, diz Meirelles. “Antes você usava o carro usado na entrada do carro novo, agora as pessoas fazem isso até com o celular”.
Assalto e sequestro
O desencanto tem levado muita gente a tentar a vida em outro país. O número de declarações de saídas definitivas do Brasil, segundo a Receita Federal, já bateu recordes em 2017: são mais de 20,4 mil até junho, enquanto em todo o ano passado foram 20,3 mil. Osmair Fernandes Victor, 49, é um dos que optaram pela mudança. Ele embarcou rumo a Chicago, nos Estados Unidos, na segunda-feira 3, acompanhado da mulher e do filho de 13 anos. “O principal motivo é a possibilidade de uma qualidade de vida melhor”, diz. “Aqui, me sinto inseguro em deixar o meu filho sair da rua, já passei por mais de uma situação de assalto e sequestro relâmpago”. Victor, que até então era consultor empresarial, vendeu seu apartamento no Brasil e há dois anos vem planejando a mudança e a abertura de uma franquia em Chicago. “Por mais que aqui eu tenha uma situação econômica boa, eu não saio mais de casa, não consigo usufruir do dinheiro.”
Diante desse cenário, fica a sensação de que o momento da mudança é inadiável. “Não dá mais para as pessoas fingirem que está tudo bem ou que os problemas são poucos”, afirma Renato Janine Ribeiro, filósofo e professor da Universidade de São Paulo. “A prisão dos empresários de ônibus no Rio de Janeiro, por exemplo, mostra que em 2013, quando as pessoas lutaram pelos R$ 0,20, brigaram contra um sistema em que muitas vezes o aumento da passagem está ligado diretamente à corrupção de empresários e políticos.” Talvez por isso, ambos — empresários e políticos — estejam tão em baixa entre os brasileiros: segundo dados do Instituto Locomotiva, 84% da população não sabe dizer o nome de alguém que possa tirar o País da crise, e 78% não sabem citar o nome de alguma empresa que esteja ao seu lado nesse momento.
Boa parte da desesperança brasileira reflete o que se vê no Congresso. Na Câmara dos Deputados, dos 513 parlamentares que ocupam cadeiras, 144 devem explicações ao Supremo Tribunal Federal — 13 deles acumulam 100 inquéritos e ações penais no STF. Desde 1988, quase todos os presidentes da Câmara estiveram envolvidos em escândalos de corrupção. O atual presidente, o peemedebista Rodrigo Maia, responde a dois inquéritos por ter recebido dinheiro da Odebrecht. Os dois antecessores de Maia, Eduardo Cunha e Eduardo Henrique Alves, ambos do PMDB, estão presos, acusados de corrupção e lavagem de dinheiro. No Senado, a situação não é melhor: em maio de 2016, um terço dos senadores respondia a alguma acusação tribunal. O caso mais recente é o do tucano Aécio Neves. Aécio, que chegou a ser afastado do Senado, mas já voltou a ocupar seu cargo, foi envolvido na mesma delação (a do empresário Joesley Batista, dono do frigorífico JBS) que ameaça o presidente Michel Temer. O presidente foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por corrupção, mas também é investigado por obstrução de Justiça e formação de organização criminosa — cabe à Câmara dos Deputados aceitar ou não a denúncia do procurador Rodrigo Janot.
Para muitos, a operação Lava Jato, que já efetuou mais de 198 prisões em três anos, é a principal esperança para garantir que a corrupção sistêmica no Brasil não permaneça impune. Mas a operação parece agora estar sob ataque.
Um Congresso de acusados
De cada três integrantes da Câmara dos Deputados, um é alvo de inquérito ou ações penais
Desde a nomeação do novo ministro da Justiça, Torquato Jardim, havia o medo de interferência na investigação. Em um primeiro momento, Jardim não descartou a troca de Leandro Daiello no comando da Polícia Federal. A mudança não ocorreu, mas, na quinta-feira 6, a direção da PF adotou uma medida que enfraquece a força-tarefa no Paraná: decidiu integrar os grupos de trabalho dedicados às operações Lava Jato e Carne Fraca. Isso significa que delegados que antes eram exclusivos da operação referente à Petrobras agora passarão a trabalhar em outros casos. A PF garante que o atual efetivo está adequado à demanda e será reforçado em caso de necessidade. A medida ocorre depois da transferência para outros estados de três dos principais delegados da força-tarefa: Érika Malena, Márcio Anselmo e Luciano Flores.
A corrupção não é um problema exclusivamente brasileiro. “No ranking global de transparência ficamos na 79ª posição, mas em relação aos BRICS temos a mesma pontuação de China e Índia, ficamos acima da Rússia e só perdemos para a África do Sul”, afirma o cientista político Antonio Lavareda. “Nos Estados Unidos, projeções dizem que os crimes de colarinho branco significam algo entre US$ 250 bilhões e US$ 1 trilhão por ano, o que é muito dinheiro para um país que já teve uma série de iniciativas ao longo do tempo para reduzir a corrupção.”
Os especialistas concordam que a crise pode ser para o Brasil o momento de virada de página. Na política, é hora de pensar no novo. “Essa crise é benéfica para a alteração das estruturas de poder no Brasil”, afirma o jurista Modesto Carvalhosa. “Nós temos a chance de criar um movimento unido e indicar novos quadros para o preenchimento das assembleias legislativas, do Congresso, do quadro de governadores e da própria presidência com nomes inteiramente diferentes”. A França, que recentemente empossou Emmanuel Macron como presidente e reelegeu apenas 140 dos 345 deputados que tentavam um novo mandato, pode ser uma inspiração. “Devemos ser capazes de eleger gente nova e desconhecida, o que vem ao encontro de uma tendência mundial, a de acabar com o profissionalismo político.”
R$ 2.023.949,28 é o valor que cada deputado custou aos contribuintes em 2016
“Somos corruptos”
Para os brasileiros, a redenção tampouco está fora da política. Dados do Instituto Datafolha mostram que entre os jovens a percepção sobre o País é negativa: 90% dos brasileiros de 14 a 24 anos avaliam a sociedade como pouco ou nada ética. Nem mesmo amigos ou familiares se salvam: 74% e 54% os acham pouco ou nada éticos, respectivamente. “Os brasileiros reconhecem que, como sociedade e indivíduo, somos corruptos”, afirma Lavareda. “A sociedade sonega, corrompe os agentes públicos no dia a dia e tem uma absoluta compulsão por levar vantagem nas mais diversas situações, então é importante que nesse momento de crise seja feita também uma reforma de valores.”
155 dos 513 deputados devem explicações ao Supremo Tribunal Federal
Um bom sinal de que as mudanças estão por vir é o crescente número de brasileiros que acredita e trabalha pela renovação da política brasileira. Beatriz Pedreira, 31, faz parte de dois projetos nessa direção. Em um deles, o Update Politics, ela mapeia iniciativas de inovação política na América Latina. Em uma das ações, ela e seus três sócios querem acompanhar as eleições no México e na Colômbia e trazer ao Brasil ideais edificantes. “Nós olhamos os movimentos da América Latina como inspiração”, afirma. “Queremos aproximar essas iniciativas e fazer as pessoas verem que as coisas não dão certo só porque acontecem na Dinamarca, por exemplo”. O outro projeto, o Jogo da Política, é voltado para a educação cívica. O conjunto de três jogos que simulam os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário leva os jovens a vivenciarem situações cotidianas das três áreas. “As pessoas querem fazer diferente mas não sabem como chegar a isso”, diz Beatriz. “Existe o despertar, mas precisamos fazer um esforço maior para divulgar as iniciativas nesse sentido”.
Para os especialistas, o importante é não permitir que o cinismo se enraíze. Caso contrário, o País pode se deparar com dois cenários: a alienação e o afastamento cada vez maior da população das atividades políticas — o nível de abstenção nas eleições de 2014 já foi o maior desde 1998 -, ou o embarque em discursos extremistas com forte teor emocional. Ambos passam ao largo da imagem de nação feliz que o brasileiro sempre se orgulhou de ostentar. Fazer o Brasil voltar a sorrir como sempre só depende de nós, de como iremos votar e cobrar quem elegermos.
13 deputados acumulam 100 inquéritos e ações penais no STF
R$ 1 bilhão por ano é o custo da remuneração dos 513 deputados federais somados
19 dos 26 partidos políticos com assento na Câmara são alvo de
323 inquéritos e ações penais
34 senadores são acusados de crimes
0 Comments:
Posta un commento