Violência à mulher no Brasil é onipresente: por conhecido, ou não, dentro ou fora de casa e em todas as idades...
No dia 30 de janeiro, uma massagista de 46 anos foi agredida em seu apartamento por um homem desconhecido. Ele foi identificado e preso um mês depois, após ela fazer uma denúncia na delegacia. Em 6 de fevereiro, outro homem ejaculou em uma universitária de 22 anos em pleno transporte público. Ela gritou por ajuda, "mas ninguém fez nada". As duas histórias são sintomáticas do quadro de violência contra a mulher no Brasil: ela é onipresente. Ou seja, acontece dentro e fora de casa, atinge mulheres de todas as idades e o agressor pode ser conhecido ou não. As histórias ilustram os números apresentados pelo relatório "Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil", divulgado hoje (26) pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
Segundo o levantamento, 27,4% das mulheres do país sofreram algum tipo de violência ou agressão no último ano. Quase 80% dessas agressões foram praticadas por um conhecido, como cônjuge, ex-companheiro ou até vizinho. E cerca de 40% das agressões aconteceram no interior do próprio lar. Menos da metade das mulheres procuram algum tipo de ajuda para a violência sofrida. Quando se trata de assédio, como "cantadas", comentários desrespeitosos ou assédio físico no transporte público, os números são ainda maiores: 37,1% das mulheres entrevistadas disseram ter passado por alguma dessas situações nos últimos doze meses. Em valores absolutos, os resultados são assustadores. Segundo uma estimativa da pesquisa, são mais de 4,6 milhões de mulheres que sofreram uma agressão física (batidão, empurrão ou chute) propriamente dita no Brasil no último ano. O que dá, em média, 536 mulheres por hora. Para violências de qualquer tipo, são 16 milhões de mulheres --1.830 por hora.
Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, explica que o objetivo do estudo é produzir dados de qualidade sobre o tema, que permitam elaborar intervenções públicas efetivas no combate à violência contra a mulher. Devido a subnotificação dos casos, diz ela, os registros oficiais do estado não dão conta da dimensão do problema. "Queremos dar visibilidade para esses tipos de violência contra as mulheres que o poder público não consegue captar com as suas classificações."
Somado a isso, afirma ela, a realidade política brasileira não favorece a elaboração e implementação de políticas públicas de combate à violência contra a mulher. "Os principais cargos públicos no Brasil são ocupados por homens. As mulheres não estão nos cargos prioritários importantes para pensar políticas públicas, o que dificulta a implementação de medidas para enfrentar violência de gênero", diz Samira em entrevista ao UOL.
O levantamento, encomendado pelo Fórum, foi feito pelo Datafolha nos dias 4 e 5 de fevereiro de 2019. Ao todo, 2.084 pessoas foram entrevistas, entre homens e mulheres, em 130 municípios de todas as regiões do Brasil. A margem de erro para o total da amostra nacional é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos. As perguntas realizadas pela pesquisa tratavam de situações vividas pelas mulheres nos últimos 12 meses, traçando assim um perfil das mulheres que já sofreram qualquer tipo de assédio, agressão, espancamento, ameaças e ofensa sexual.
Percepção sobre violência diminuiu mas agressões contra mulheres aumentaram
Uma observação em particular chama atenção nos resultados da pesquisa: a discrepância entre os números de percepção da violência e de vitimização - ou seja, da violência que acontece de fato. .De acordo com o relatório, a percepção de fatos violentos diminuiu desde que o levantamento foi feita pela última vez, em 2017: 59% dos homens e mulheres entrevistados relataram terem presenciado alguma situação de assédio ou agressão, ante 66%, em 2017.
Já os relatos de agressões sofridas pelas mulheres permaneceram constantes nos últimos dois anos. Em 2017, 28,6% das entrevistadas responderam terem passado por algum tipo de violência ou agressão. Em 2019, foram 27,4% - a diferença está dentro da margem de erro. Para se ter uma dimensão melhor dos valores, três de cada dez mulheres entrevistadas sofreram algum tipo de violência.
Para Samira Bueno, essa incoerência pode estar relacionada ao momento político em que o país vive. "A sociedade está mais alheia e isso é um fato. A questão é por que ela está mais alheia. Pode ser por conta do momento político. Pode ser porque estamos evitando olhar para esses fenômenos e refletir sobre isso", explica ela.
"Você tem de um lado todo o empoderamento feminino e das mulheres demandando direitos e políticas públicas de atendimento, e de outro você tem um movimento conservador em que debater gênero se tornou algo ideológico. A violência de gênero tem sido muito mal interpretada.".
Outra explicação para a discrepância, analisa a especialista, é o fato de que cada vez mais as agressões acontecem no interior da própria casa. "Talvez haja essa percepção de que a violência diminuiu porque ela está cada vez mais restrita aos espaços domésticos."
Segundo a pesquisa, 42% das mulheres que relataram terem sofrido algum tipo de violência, disseram que ela aconteceu em casa. Além disso, em 76,4% dos casos, o responsável pela agressão foi um cônjuge, companheiro ou namorado. "O algoz da mulher é cada vez mais alguém próximo."
Para Samira, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maior parte das mulheres não procuram ajuda não só por medo ou vergonha, mas também porque em boa parte das vezes são mal atendidas. "Se o poder público não consegue a confiança dessa mulher, ela não vai procurar o estado. As mulheres estão morrendo sem que o estado nem seja acionado", diz.
"As leis por si só não mudam condutas, não mudam o comportamento. Para a lei funcionar, é necessário outras instâncias do poder público trabalhando para que isso aconteça. Isso necessariamente depende do trabalho da polícia." Por outro lado, o relatório também indica que gerações mais jovens, apesar de serem mais vulneráveis à violência, estão mais atentas à questão, assim como mulheres de escolaridades mais altas.
De acordo com os números apresentados, 77% das pessoas entrevistadas entre 16 e 24 anos relataram terem visto alguma situação de assédio ou agressão nos últimos 12 meses. A porcentagem é menor em todas as demais faixas de idade - chega a 40%, para entrevistados com mais de 60 anos. Já no recorte da escolaridade, o reconhecimento da violência é de 65% para pessoas com ensino médio e superior. Entre entrevistados com apenas o ensino fundamental, fica em 48%.
"Mulheres jovens, até por estarem muito mais empoderadas e terem mais noção de seus direitos, estão muito mais propensas a reconhecer diferentes tipos de violência como tal", diz Samira. "Se todas as mulheres de todos os estratos etários tivessem a mesma consciência sobre diferentes tipos de violência, possivelmente os números seriam melhores.
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